O interesse de todas as classes sobre a moda é clara revelação dos tempos hipermodernos. O resgate da história, o despertar da tradição e a individualização são as contradições imprescindíveis de nossa era.
Por Marcellus Nishimoto
Milão, 28 de fevereiro de 2010. As cortinas escuras em ambiente sóbrio abrem-se e 18 monitores unidos formam uma grande tela de cinema. Ao som de um coral digital e acordes de piano – simples, quase uma nota só – elevam a cinza e escura passarela a status de catedral solene. As imagens em preto e branco da grande tela revelam o ofício original da alfaiataria minuciosa, manual e centenária. Os aqui chamados artesãos das agulhas retiram medidas, moldam e costuram sobre o corpo vivo. A técnica de moulage, na qual a roupa é modelada diretamente sobre o manequim, abre mão dos bustos de tecido inanimado e encontra o dorso vivo feminino, ampliando a experiência de roupa única, sob medida, intransferível: quase ou, se não, obra de arte. E o trabalho do atelier, um laboratório de linhas e tecidos e seus cientistas de jalecos brancos, alfineta, alinhava e arremata a estrutura que se tornará o objeto de desejo de meninas bem nascidas ou recém-chegadas a esfera do consumo de luxo. A dupla de estilistas, Domenico Dolce e Stefano Gabbana, é o protagonista desse documentário do ofício. No fundo, a mensagem pretendida: a grande costura está na mão, no olhar e, principalmente, no árduo tempo do artista em contato com a matéria e com o corpo. E que tecnologia alguma substituirá o esforço e o subjetivismo humanos. E que a tradição não se dobrará à velocidade retalhante da contemporaneidade.
A coleção é pontuada pela sobriedade do negro, do bourdoir, do veludo, da seda, do pois quebrados por porções douradas, avermelhadas, rendadas e transparentes. A sexualidade by Dolce & Gabbana se veste de maneira inusitadamente sensual. Sensualmente em estampas de onça e em formas dos anos 50. O tradicional tailler é revivido e as bijuterias são de inspiração Chanel, porém, com todo o excesso italiano habitual, capiche? Lição aprendida e cultuada, o desfile de outono/inverno da casa italiana para o ano de 2010 e 2011, nos mostra a maior das contradições necessárias da moda.
O grande paradoxo tão bem arquitetado pela casa italiana está na rapidez em que idéias e conceitos de estações anteriores são negadas com tanta propriedade. O jogo pode parecer petulante, todavia é neste pseudocinismo que se construiu a concepção moderna do original. A era da crise da razão esclarece que a técnica serve ao criador e não a criatura. A técnica reproduz, em tempo certo, a novidade com data marcada para morrer. A criatura nasce da tecnologia e por ela será suplantada. A narrativa fragmentada das linguagens contemporâneas permite este revisitar permanente, e o passado se converte em novo e de novo. A persistência da memória tem valor e o antigo se recorta em originalidade. A sociedade dos excessos forma seus esquemas estéticos com os pedaços visuais deslocados e ressignificados dentro de um novo repertório.
A real contradição de Dolce & Gabbana é a resposta reativa a uma década de auto-indulgência e ostentação – não que ela seja novidade em nossa era – coroada ao final com a crise financeira de 2008. A própria grife era arauto do histrionismo fashion dos anos 2000. As grifes premium, como estratégia de produção, transferiram grande parte de sua produção para as indústrias chinesas. Entretanto, o crescimento galopante do poder da China como fabricante e consumidor commoditizou o mercado de luxo. O produto made in China ofuscou o desejo exclusivista dos consumidores do setor, abrindo os olhos de Dolce & Gabbana que se voltam à tradição ocidental da alfaiataria para restaurar a emoção artesã e autêntica em seu produto. O pret-a-porter de luxo não pode ser levianamente terceirizado, dizem os apreciadores. O novo é recriado e mitificado pelos próximos seis meses e o produto da grife não perde em qualidade. Muito pelo contrário, ele a tem como característica primordial do objeto de luxo. Todavia, o conceito que reveste a marca precisa estar “eternamente” alinhado – outro aspecto de contradição – com a imagem “mutável” da moda contemporânea.
Segundo o filósofo Gilles Lipovetsky (2004), o termo que se melhor aplica a nova configuração do nosso tempo é hipermodernidade. Os valores e processos amalgamados da era moderna são modificados pela ótica fugaz do tempo. Todos os comportamentos sociais e produtivos se decompõem em velocidade atômica e a superação dá lugar a hiperação. Um dos pontos fundamentais que diferenciaria a pós-modernidade da hipermodernidade é o término da negação ao passado. Cultivamos o antes e a tradição como fonte mercadológica de inspiração para o inédito. Comportamentos são comercializados em escala global e o contra-senso do individualismo indulgente é almejado em reação à standartização da vida coletiva. A pluralidade de nichos, subgrupos, cria núcleos para legitimar as várias personas sociais e assegurar a manutenção de identidades quase particulares. O resgate da religiosidade, da história, dos valores e das culturas locais são os refluxos moderadores aos excessos do comportamento livre e hedonista. Somos estimulados a viver diversas experimentações e, por outro lado, continuamente reprimidos, negociando nossa conduta em sociedade.
A lição apresentada por Dolce & Gabbana nos deixa interrogações críticas: qual é a data de prescrição do interesse? Ela se aplica a valores também? Existe uma construção pessoal e social menos contraditória?
E a trivial máxima do copo com água pela metade: ele está meio cheio ou meio vazio?
Gilles Lipovetsky: entrevista revista Cult
Gilles Lipovetsky: entrevista revista Veja
China, lider no mercado de luxo
LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
LIPOVETSKY, Gilles e ROUX, Elyette. O luxo eterno. Da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LIPOVETSKY, Gille. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário